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São Francisco de Assis (Giovanni di Pietro Bernardone) é mais do que um santo venerado: ele é um arquétipo universal de amor, compaixão e simplicidade radical. Sua vida não foi apenas uma história de fé, mas uma revolução espiritual que desafiou profundamente as estruturas sociais e eclesiásticas da Idade Média. Ao abraçar a pobreza e estender sua fraternidade a todas as criaturas — dos leprosos aos lobos —, Francisco inaugurou um caminho de vida que continua a ser um farol de esperança e um chamado à ação para a humanidade.
Neste artigo, aprofundaremos a história fascinante de São Francisco de Assis, examinando o contexto de sua transformação, a fundação revolucionária de sua Ordem e o legado inestimável que ele deixou para a espiritualidade, o meio ambiente e a busca pela paz.
Da Riqueza à Renúncia: O Contexto da Conversão
Nascido por volta de 1181, na próspera Assis, Francisco era filho de Pietro Bernardone, um rico mercador de tecidos. Na sociedade da época, a riqueza de seu pai o colocava na ascendente classe burguesa, ambiciosa por prestígio social e político, que rivalizava com a antiga nobreza. Seu pai o mimava, incentivando seus sonhos de glória e cavalaria, o que lhe rendeu o apelido de “Reizinho das Festas” entre a juventude da cidade. Sua juventude foi, portanto, marcada pelo luxo, pelas roupas finas e pelo desperdício financeiro em banquetes e ambições militares.
Entretanto, essa vida de superficialidade ruiu após duas experiências traumáticas. A primeira foi o tempo passado como prisioneiro de guerra após um conflito local, seguido por uma grave doença que o debilitou. Essas experiências, aliadas a um crescente vazio interior, o levaram a questionar o propósito de sua vida. Ele sentia uma atração espiritual, mas ainda lutava contra seus antigos hábitos.
O Chamado do Crucifixo e o Ato Radical
O ponto de viragem de sua jornada foi marcado por atos de caridade e devoção que confrontaram suas mais profundas aversões.
- O Encontro com o Leproso: A aversão de Francisco aos leprosos era visceral, um reflexo do tabu social da época. O encontro providencial em que ele desceu do cavalo e beijou a mão de um leproso foi um ato de profunda superação. Ele descreveu esse encontro como o momento em que Deus lhe deu a graça de “começar a fazer penitência”, trocando o que era amargo pelo que era doce.
- O Chamado de San Damiano: Posteriormente, enquanto orava na igreja em ruínas de San Damiano, ouviu a voz de Cristo vinda do Crucifixo: “Francisco, vai e reconstrói a Minha Igreja, pois ela está em ruínas!” Inicialmente, ele dedicou-se à restauração literal daquela e de outras pequenas igrejas em Assis. Contudo, ele logo compreendeu que o chamado era espiritual e moral: a Igreja estava em ruínas não em sua estrutura física, mas em sua pureza doutrinária e seu compromisso com a pobreza evangélica.
O clímax dessa conversão veio no julgamento público diante do Bispo de Assis. Diante de seu pai irado, Francisco renunciou a todos os bens materiais, despojando-se de suas roupas para devolvê-las ao pai, declarando sua total e incondicional dependência de Deus. Este foi um gesto teatral e revolucionário que chocou a sociedade, mas que marcou o nascimento de um homem dedicado à simplicidade radical e à imitatio Christi (a imitação da vida de Cristo).
A Fundação das Ordens e a Regra de Vida
Após sua renúncia, Francisco começou a viver como um eremita, dedicando-se à pregação itinerante e ao serviço aos doentes. A sua mensagem era tão simples e cativante — viver o Evangelho sem comentários — que logo atraiu um grupo de seguidores, que ele carinhosamente chamou de Frati Minori (Irmãos Menores).
Em 1209, ele redigiu a primeira Regra de Vida (Regula Prima) para os seus companheiros, baseada em passagens bíblicas que enfatizavam a pobreza, a fraternidade e o serviço. A aprovação desta Regra pelo Papa Inocêncio III foi um momento crucial, pois a Igreja estava cautelosa com novos movimentos de pobreza, temendo a heresia. O Papa reconheceu a pureza do ideal franciscano, aceitando-o como uma força de renovação dentro da Igreja.
A Ordem Franciscana rapidamente se expandiu, dando origem às três Ordens que demonstram a universalidade do carisma de São Francisco de Assis:
- Primeira Ordem (Frades Menores): Os frades, dedicados à pregação e à vida comunitária.
- Segunda Ordem (Clarissas): As monjas de clausura, fundadas por Santa Clara de Assis, focadas na oração contemplativa, sustentando espiritualmente a missão.
- Terceira Ordem (Franciscanos Seculares): Criada para que leigos pudessem viver a espiritualidade franciscana (simplicidade, paz e serviço) sem abandonar seus lares e famílias.
A Missão pela Paz: O Encontro com o Sultão
O compromisso de Francisco com a paz era tão radical quanto sua pobreza. Durante a Quinta Cruzada, em 1219, São Francisco de Assis viajou para o Egito. Ele não foi para pregar a guerra, mas para pregar o diálogo e a fraternidade.
Francisco cruzou as linhas de batalha e buscou um encontro com o Sultão Al-Kamil. O Sultão, surpreendido pela coragem e humildade do frade, o recebeu com respeito. Embora a tentativa de conversão tenha falhado, o encontro foi um marco histórico. Ele demonstrou que a fé e a compaixão poderiam prevalecer sobre o conflito e a violência. Este ato de diálogo inter-religioso permanece como um dos pilares mais inspiradores do legado franciscano na busca pela paz mundial.
O Cântico das Criaturas e o Legado Ecológico
O profundo amor e respeito pela natureza de Francisco o fez enxergar a criação como uma grande família. Ele via a natureza com uma visão sacramental, onde cada criatura era um sinal do Criador, e as chamava de “irmão” e “irmã”.
Essa visão mística e ecológica atingiu seu ápice no “Cântico das Criaturas” (Laudes Creaturarum). Escrito em um momento de extremo sofrimento físico e quase cegueira, este hino de louvor agradece a Deus pelo Irmão Sol, pela Irmã Lua, pelo fogo, pelo vento e, surpreendentemente, pela Irmã Morte. Esta é a razão pela qual São Francisco é o padroeiro dos animais e foi reconhecido pela Igreja como o patrono dos ecologistas. Sua teologia prática oferece um modelo de como a humanidade deve se relacionar com o planeta: não como dominadora, mas como guardiã fraterna.
Os Estigmas e o Sentido da Vida Franciscana
A vida de São Francisco de Assis foi uma incessante busca pela imitatio Christi. O ponto culminante dessa união mística ocorreu em 1224, durante um retiro no Monte Alverne, onde ele recebeu os Estigmas: as chagas da Paixão de Cristo em seu próprio corpo.
Este evento místico, que ele carregou em segredo por dois anos, não foi visto como um prêmio, mas como o sinal final de sua conformidade com Cristo Pobre e Crucificado. Sua dor física, que se intensificou, foi acompanhada por uma alegria espiritual indescritível. Francisco morreu no dia 3 de outubro de 1226 (comemorado em 4 de outubro), deitado nu no chão, cumprindo seu voto de pobreza até o fim.
A Essência Inabalável: O Que Fica
A coisa mais importante sobre São Francisco de Assis não se resume a um único milagre ou feito, mas ao compromisso radical e integral com o Evangelho da simplicidade. Ele provou que a felicidade pode ser encontrada na renúncia, no serviço e na aceitação da fragilidade humana.
O seu legado é um convite atemporal à conversão e à revolução interior, resumido em sua famosa oração, que ecoa a sua vocação de ser um instrumento da Paz:
A Oração de São Francisco
Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver dúvida, que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria; Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais Consolar, que ser consolado;
Compreender, que ser compreendido;
Amar, que ser amado.
Pois é dando que se recebe, É perdoando que se é perdoado, E é morrendo que se vive para a vida eterna.
Amém.
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